Internado numa UTI em Goiânia,
o estudante de Ciências Sociais Mateus Ferreira da Silva, de 33 anos, luta pela
vida depois que teve o crânio afundado a golpes de cassetete por um capitão da
PM durante um ato público da greve geral de 28 de abril.
Em estado grave, com
sinais de melhora nos últimos dias, sua recuperação é alimentada pelas
esperanças que a medicina oferece em nestes casos. Assim que soube da tragédia,
a mãe do estudante, Suzete Barbosa, deslocou-se para a capital de Goiás, para
ficar ao lado do filho. Através de imagens gravadas por duas
câmaras de vídeo, ambas portadas por estudantes presentes, o país inteiro pode
assistir à cena de violência que levou para a UTI. Pode ver o momento em que
Mateus era atingido na cabeça por golpes de cassetete -- ouve-se até um clique
neste momento -- numa sequência tão violenta que a arma se partiu no meio.
Exibidas no dia da greve, a cena seria reprisada nos telejornais, mais tarde.
Mas o amor de mãe impediu Suzete de olhar as imagens. "Não
tive coragem," disse ela aos jornalistas.
Esta
diferença fundamental -- a sobrevivência da vítima, mesmo numa UTI e sem
perspectivas claras de recuperação -- separa o destino de Mateus de uma
tragédia ocorrida em 28 de março de 1968, no restaurante Calabouço, no Rio de
Janeiro, quando um secundarista de 18 anos, Edson Luís Lima Souto, recebeu um
tiro de fuzil de um soldado da Polícia Militar e morreu na hora. Separados
pela condição médica, por uma distância de 49 anos de
história de um Brasil que passou por transformações inegáveis em meio século,
Mateus Ferreira e Edson Luís ocupam posições análogas na luta sem fim
pela democratização do país.
Cada um em seu
momento e em suas circunstâncias específicas, ambos se tornaram alvos dos
perpétuos movimentos de forças que trabalham para diminuir direitos e
asfixiar liberdades.
A repressão à greve
geral de 28 de abril faz parte do esforço para garantir a sobrevivência de um
governo repudiado por 73% da população, que procura por todos os meios levar
adiante um conjunto de medidas a maioria rejeita -- em essência, fazem parte da
plataforma de subordinação aos interesse do governo dos Estados Unidos que a
ditadura de 64 tentou mas não conseguiu cumprir até o fim. O tiro de
fuzil que alvejou Edson Luís apontava para o AI-5, era o golpe dentro do golpe
que, nove meses depois, aboliu as garantias individuais, escancarou a tortura
como método de investigação numa ambiente de censura e treva. A morte do
estudante não foi uma tragédia isolada, como recordo no livro "A mulher
que era o general da casa":
Na fuzilaria, sete pessoas
foram feridas a bala e levadas ao hospital. Um segundo estudante, Benedito
Frazão Dutra, chegou ferido ao pronto-socorro e tornou-se o segundo morto do
dia. Um porteiro que passava pela rua foi alvejado. Um comerciante que
assistia ao conflito da janela de seu escritório recebeu um tiro na boca.
Jornal de
maior prestígio na época, inclusive pela atenção que prestava a oposição
e pela firmeza na denúncia os crimes da ditadura, o Correio da Manhã descreveu a cena assim:
"Não agiu a Polícia Militar como força pública. Agiu como um bando de
assassinos." O Jornal do Brasil assumiu um tom parecido: "assassinato
leva estudantes a greve nacional."
Dias depois
da tragédia, o ministro da Justiça Gama e Silva sustentou durante um debate na
TV que a morte do estudante fora uma "armação dos comunistas". A tese
era que líderes estudantis haviam criado um tumulto que havia obrigado a
PM a intervir daquela maneira. Presente ao programa, o jornalista Washington
Novaes, que assistira a cena da janela da redação da revista Visão, me contou,
quatro décadas depois, que rebateu o ministro na hora. "Eu estava lá e não
foi assim, ministro. Vi quando o policial atirou." Na entrevista para o
livro, Washington ainda detalhou: "Vi o momento em que um aspirante da PM
se ajoelhou, fez pontaria com o fuzil e deu um tiro. Também vi o menino caindo."
Com o
passar dos anos, a memória da tragédia de 1968 evaporou-se, junto com as
garantias democráticas que sobreviviam até o AI-5, como o habeas corpus, que
evitava a tortura de quem era aprisionado sem culpa formada. Nenhuma
investigação séria foi aberta para apurar as responsabilidades pela morte do
"menino". O maior punido foi o próprio Washington Novaes. Diretor da
revista Visão, semanário de economia que tinha uma credibilidade sem paralelo,
foi colocado na geladeira profissional, forçado a demitir-se e levado a mudar
de foco na carreira, abandonando o jornalismo político pelos documentários
voltados para a ecologia e a cultura indígena. Ele ainda foi enquadrado em dois
IPMs que, sem uma acusação específica, procuravam questionar sua credibilidade
e apagar a memória de um episódio que se tornou um dos marcos permanentes da
violência da ditadura. Nos interrogatórios, "não queriam saber o que eu
tinha visto. Só queriam que eu mudasse o que dissera. Tentavam me confundir,
descobrir contradições."
O esforço para
apagar a memória das imagens violentas de 28 de abril já começou -- com ajuda
de uma mídia que jamais exibiu a mesma indignação de meio século atrás. Nos
primeiros momentos, a pauta era tentar enquadrar Mateus no papel de
"vândalo-baderneiro", caminho mais fácil para transformar a vítima em
culpado.
Havia uma
dificuldade técnica intransponível, porém. Com a nitidez que a tecnologia
permite, as imagens captadas em Goiânia mostram uma cena clara quando o capitão
Augusto Sampaio, subcomandante do 37a Companhia Independente da PM de Goiás,
avança a golpes de cassetete. Vê-se três estrelas que indicam a patente em seu
ombro. Não há dúvida a respeito. A agilidade e perícia no manejo do cassetete
chegam a impressionar.
Numa reportagem do
Globo de 30 de abril, o capitão Sampaio tornou-se era um oficial sem nome e sem
patente. Foi descrito como "um policial militar" envolvido no
caso. Na Folha de S. Paulo de 2 de abril, o capitão aparecia com nome e
sobrenome. Mas era qualificado como o "PM sob suspeita de agredir estudante em Goiás". Errado. Pode-se até debater a responsabilidade
individual do capitão no caso. Mas seu papel está documentado em vídeo. Não há
suspeita. Ele foi filmado quando atingiu o estudante. Está lá, em dois vídeos,
que todo mundo pode encontrar na internet.
Negar os fatos,
sabemos desde Hanna Arendt, é a melhor forma de trabalhar para que uma
democracia se transforme em ditadura. Em bom português: para que país em que
Mateus Ferreira luta pela sobrevivência numa UTI, seja o mesmo Brasil em que
Edson Luís foi morto e ninguém teve de responder por isso.(Via:247).
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