A reforma trabalhista foi aprovada pelo Senado no dia 11 de julho. A casa ratificou as novas regras que dilaceram o código que rege as leis trabalhistas, a CLT, depois de um acordo com o governo. A Câmara já havia aprovado o texto em abril. Com a passagem pelo Congresso, o governo sancionou a medida no dia 13 de julho. O acordo que permitiu a aprovação no Senado envolve um compromisso do governo de alterar, via Medida Provisória, as questões que os senadores e senadoras levantaram. Na prática, a manobra acelerou a aprovação das novas regras. A partir da aprovação, a reforma entrará em vigor em 120 dias (em novembro deste ano), um “presente” para todos as trabalhadoras e trabalhadores brasileiros.
No campo, quem é assalariado terá ainda mais problemas, inclusive se um conjunto de novas medidas entrar em vigor. Se a reforma geral fragiliza, o adendo para o campo proposto pelo PL 6442/2016 de autoria do presidente da bancada ruralista na Câmara, deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), vai possibilitar a servidão rural tornando legais as práticas de muitos fazendeiros que hoje são consideradas análogas à escravidão. Por exemplo, a medida prevê, dentre outros absurdos, o contrato por moradia e comida no lugar do salário. Outros aspectos tornarão a vida das mulheres especialmente mais vulneráveis, pois permitirá pagamento por hora trabalhada e trabalho em locais insalubres mesmo estando elas lactantes ou gestantes.
Fonte: CNJ
O que os ruralistas desejam é a transferência do risco da produção para os empregados. Para o assessor jurídico da Confederação Nacional do Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais (Contar), Carlos Eduardo Chaves, a reforma é inconstitucional. “Já há um material do Ministério Público do Trabalho que fala sobre a inconstitucionalidade da reforma. Quando você tem uma situação como essa, não adianta você melhorar nada. Há pontos graves e mesmo que você mude esses pontos graves não vai mudar a essência da reforma. Ela retrocede para um momento anterior à CLT. A impressão que nós temos hoje é que essa reforma foi feita a partir da análise de jurisprudências desfavoráveis aos empresários, aos usineiros, fazendeiros para dar um jeitinho de evitar condenações na justiça e enfraquecer entidades sindicais. O que eles querem mesmo é que o empregador possa fazer o que quiser. ” Em entrevista para a ASA Brasil, Carlos Chaves esclareceu as principais mudanças que afetam os trabalhadores e trabalhadoras do campo e alerta para uma situação social que pode aprofundar a pobreza e aumentar os já crescentes casos de violência no campo.
ASACom – De um modo geral, como as regras da reforma trabalhista aprovada no dia 11 de julho pelo Congresso e sancionada dois dias depois pela Presidência da República afetam os trabalhadores e as trabalhadoras do campo?
Carlos Chaves – Essa reforma trabalhista foi construída a toque de caixa. Ela foi uma proposta feito pelo governo, uma proposta mais enxuta, e depois na Câmara, quando o relator foi analisar, ele saiu recolhendo as contribuições dos empresários e não colheu sugestões de entidades importantes que trabalham com fiscalização do trabalho como o Ministério Público do Trabalho e juízes ou sindicatos e montou um projeto gigantesco que modifica de modo considerável a CLT e as demais legislações [trabalhistas].
O grande problema dela, que é [um problema] universal e com um agravamento no meio rural, é que foi construída com uma premissa falsa de que há igualdade entre patrões e empregados. Ela está toda lastreada na livre negociação e isso é alardeado por aqueles que a aprovaram de forma quase unânime. Só que quando se fala em negociação, você precisa pressupor que haja uma igualdade nas condições de negociar. Mesmo com os sindicatos, mesmo com a nossa união, mesmo com toda a mobilização dos trabalhadores, muitas vezes só se consegue alcançar algum avanço fazendo greve. Se houvesse essa igualdade, jamais seria deflagrada qualquer greve no país.
Quando você pega vários direitos como jornada, intervalos, férias, quitação anual das verbas rescisória e transfere isso para se resolver numa relação direta trabalhador e empregador ou em outros casos até entre sindicato e empregador, mas sem a proteção da lei, aí você coloca o trabalhador que já é vulnerável numa situação de maior vulnerabilidade ainda. Por que no campo é mais grave? Porque o trabalhador rural tem um perfil socioeconômico muito inferior ao trabalhador da cidade, então são trabalhadores que têm baixa escolaridade, às vezes analfabetos, outros analfabetos funcionais, são trabalhadores que vivem muitas vezes em situação de pobreza, tanto que o trabalho escravo no meio rural é uma realidade por conta disso. Esse é o primeiro impacto e ele é gravíssimo.
Até a aprovação da reforma trabalhista não havia essa possibilidade de que o negociado podia prevalecer sobre o legislado. Havia um princípio da nossa legislação que é o de aplicar a lei da forma mais benéfica para o trabalhador. Então isso impedia que você negociasse uma jornada que desrespeitasse o limite da lei. Ou seja, você pega um trabalhador que é vulnerável e coloca para negociar diretamente com o empregador sem a proteção da lei.
Fonte: CNJ
Enfraquecimento dos sindicatos – As entidades sindicais rurais têm mais condição de fazer essa negociação. Muitos são atuantes. Se você pega a realidade de Pernambuco, por exemplo, há uma convenção estadual. Os sindicatos precisaram se unir junto com a Fetape, a Fetaeg e a Confederação [Contar] para poder negociar em pé de igualdade com os usineiros. Não bastou unir os trabalhadores de um município para negociar.
A reforma enfraquece os sindicatos. Dentre outros pontos, de uma hora pra outra, você extingue a contribuição sindical. Concordo que a contribuição sindical precisa passar por mudanças. Você tem uma quantidade de sindicatos no país, principalmente no ambiente urbano, que recebem a contribuição sindical sem fazer nenhum tipo de negociação. Mas não podia acabar de uma hora para outra, sendo péssimo para o meio rural. Existe uma realidade diferente para o meio rural e uma dificuldade muito grande de filiação, pois os trabalhadores podem trabalhar em lugares diferentes durante o ano. Outro problema é a homologação da rescisão de contratos com mais de um ano, que antes era feito nos sindicatos e agora não precisará mais desse intermédio. Você não terá como saber, por exemplo, se o trabalhador está recebendo todos os seus direitos. Há um estímulo à negociação, ao mesmo tempo você torna o trabalhador mais vulnerável e enfraquece os sindicatos.
Fonte: CNJ
Acesso à justiça e danos ao trabalhador – Os sindicatos, além da função de reivindicação, também tem uma função de mediação. Tem muita coisa que você resolve nessa relação sindicato e empresas, evitando chegar à Justiça. A nova lei estabelece uma série de obstáculos para o trabalhador ingressar com uma ação judicial. Isso dificulta o acesso à justiça. A reforma parece autorizar que o empregador possa fazer tudo sem ter uma instância de controle, nem do sindicato, nem da justiça.
Há um cardápio de danos morais, um cardápio de violações que se pode fazer sabendo já quanto o empregador vai pagar de indenização. Tem um artigo que diz que se o trabalhador receber uma ofensa leve, o empregador deverá pagar até 3 salários do trabalhador. Antes se analisava a renda do empregador, a extensão da ofensa, o sofrimento provocado, para aí sim definir um valor que tornasse aquela pena significativa. Isso é uma coisa para incentivar a impunidade. Outra medida é a reincidência, que gera multas em dobro. Agora, o empregador só é reincidente se cometer a violação com o mesmo funcionário. Significa que hoje eu ofendo um e sou processado e pago a multa desse “cardápio”, amanhã eu ofendo outro e, mesmo assim não pago a multa dobrada pois a lei não considera reincidência.
Outro exemplo de mudança é o fim da hora in itinere, que é o tempo que o trabalhador gasta se deslocando de casa para o trabalho em veículo fornecido pelo empregador que é uma remuneração que o trabalhador recebia por não haver transporte público ou não haver horário de transporte público para a função do trabalhador no local de trabalho. Para o meio rural, isso é péssimo pois era essa obrigação que fazia o empregador organizar transportes melhores [em qualidade e número]. Quanto mais tempo o trabalhador demorasse nesse transporte, mas ele tinha direito de receber. O que impedia que o empregador submetesse o trabalhador a transportes longos era justamente essas horas que ele tinha que pagar. Com isso, vamos voltar a uma realidade em que o empregador vai utilizar um mesmo ônibus, por exemplo, pra pegar todo mundo, independente do tempo que isso dure. Se considerarmos o isolamento geográfico de alguns locais de trabalho e as distâncias das moradias no meio rural isso é péssimo.
ASACom – Especialmente para as mulheres trabalhadoras do campo, o que muda?
Fonte: CNJ
Carlos Chaves – Há uma proporção de 89% de trabalhadores do campo para 11% de mulheres trabalhadoras. As mulheres geralmente trabalham em atividades que são pesadas. Por incrível que pareça no imaginário, o corte de cana não é a atividade mais pesada. Quem trabalha por exemplo em seleção de fruta é bem pior. Quando você pega essa mulher que se submete a mais de uma jornada por dia e diz que ela vai receber por aquela hora específica, é uma situação pior ainda. Quando você pega a possibilidade de lactantes e gestantes trabalharem em situações insalubres de saúde… gente, isso é um absurdo! O ambiente insalubre mais presente no campo é onde existem e são aplicados agrotóxicos. São vários e vários casos que a gente conhece de pessoas que sequer trabalhavam para as empresas, bastavam ser vizinhas, e tiveram má-formação do feto a partir do contato residual do agrotóxico. Então imagine só a possibilidade de isso acontecer com quem trabalha nesses locais… A gente não percebe a extensão dos danos que essa reforma pode causar.
ASACom – Quando a gente soma esse conjunto de leis proposto ora pelo Governo Federal, ora pelo Congresso, como a reforma trabalhista, a reforma da previdência, a lei que regulamenta a terceirização e o projeto de lei 6442/2016 do deputado Nilson Leitão (que cria uma situação de regras exclusivas para o trabalho rural), o que é possível enxergar de cenário para os trabalhadores e trabalhadoras do campo?
Carlos Chaves – É o apocalipse!! E vou te explicar por que. Estamos agora no extremo sul da Bahia para acompanhar um processo de negociação com as prestadoras de serviço de uma grande empresa. Elas são terceirizadas. A nossa luta aqui é para tentar igualar os salários. Mesmo assim, os trabalhadores, nas assembleias, já reconhecem que eles não vão ganhar os mesmos salários que a empresa contratante paga para seus funcionários diretos. É muito fácil encontrar fontes que dizem que o trabalhador terceirizado ganha muito menos que o funcionário direto. Você agora vai começar a ter demissão de trabalhador para ser contratado por empresas terceirizadas sem qualquer garantia de proteção. Você diminui os salários desse trabalho em torno de 20 a 30%. Então imagine acrescentar ao cenário da reforma trabalhista à situação de terceirização? Por exemplo, quase 90% dos casos de acidentes de trabalho, um dado de 2014, são ligados a trabalhos terceirizados. Só essas duas legislações já mostram um retrocesso gigantesco.
Fonte: CNJ
E o pior, você tem o [Projeto de Lei] 6442 [de 2016]. O 6442 é a comprovação daquele ditado popular que diz que “não há nada tão ruim que não possa piorar”. O 6442 é a reforma trabalhista piorada! O deputado Nilson Leitão diz que a atual legislação não observa os usos e costumes de cada região. Na década de 1970, quando esse discurso de usos e costumes foi revisado por um conjunto de normas, por exemplo, para fornecer água potável e banheiros pros seus trabalhadores, era a forma [de justificativa] que os empregadores encontravam para legitimar as piores práticas de trabalho. É tanta coisa absurda nesse projeto e vou citar algumas. Por exemplo, o projeto diz que o empregador ficará desobrigado a fornecer banheiros em terrenos acidentados. O que é isso? É obrigar o trabalhador a fazer suas necessidades no mato! Outro: hoje todo exame admissional gera duas vias, uma para o empregador e uma para o trabalhador. O projeto deixa essa segunda via à disposição da fiscalização, desde que seja solicitada. Ou seja, ele propõe que não se dê ao trabalhador ciência da saúde dele. Ainda tem a dupla fiscalização: o projeto propõe que a primeira visita da fiscalização seja educativa, fazendo com que se perca o efeito surpresa que muitas vezes flagra trabalho escravo no campo. A partir daí essa visita não geraria multa! O projeto é tão absurdo que ele legaliza o pagamento de salário em troca de comida e moradia. Com isso não dá pra brincar. Muita gente achava que a reforma trabalhista não passaria e passou!
E não podemos descartar a reforma da previdência, que está aí. Quando você soma as quatro legislações, é a precarização total do trabalho. É o trabalho até a morte! Com a reforma da previdência, inclusive, há notas técnicas que falam que apenas 10% da população vai conseguir se aposentar. Para o meio rural o impacto será devastador.
ASACom – Essa reforma vai de encontro com acordos internacionais trabalhistas dos quais o Brasil é signatário?
Fonte: CNJ
Carlos Chaves – Sim. Um é o Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969), no qual há um artigo que diz que você deve observar a progressão de direitos. Esse tratado proíbe que você retroceda. O direito precisa estar sempre em evolução. Você não pode acabar com o direito do trabalhador, é preciso sempre melhorá-lo. Então essa reforma é uma violação grave.
ASACom – Qual o impacto para a economia do campo de um modo geral?
Carlos Chaves – Aquele trabalhador que compra de seu José os produtos que ele vende nas feiras da agricultura familiar vai perder o poder de compra dele e vai passar a comprar menos. Há cinco anos, a Espanha fez uma reforma e o resultado disso foi que a maioria da população passou a receber menos de um salário mínimo. A precarização não é a saída. Isso vai gerar mais conflitos. O trabalhador não vai aceitar isso. Os conflitos vão aumentar. E, hoje, já é crescente a violência no campo. Infelizmente, voltaremos a reviver o período que antecede a CLT.
As empresas sempre conseguiram fazer riqueza aproveitando a nossa CLT. O Brasil já viveu taxas de emprego muito boas, inclusive recentemente, e isso é algo que sempre conviveu com a CLT. A CLT não é o problema. Eu desafio qualquer empregador do campo a abrir qualquer planilha de custo dele e me mostrar que o custo do trabalho é o seu maior gasto. Não é! Ele gasta mais com máquinas, com agrotóxicos e menos com trabalhador. O custo com mão de obra é baixo. O que eles querem é aumentar o lucro.
(ASACOM),(C.Geral).
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