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Segundo a OMS, a resistência do gonococo a diferentes classes de antibióticos como beta-lactâmicos, quinolonas e macrolídeos aumentou nos últimos anos. No Rio de Janeiro, pesquisas demonstram o incremento da resistência desses agentes infecciosos sexualmente transmissíveis à maior parte dos antibióticos conhecidos.
Entrevista: Dra. Silvia Figueiredo Costa
Fonte: Site Medscape.com
Estima-se que mais de um milhão de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) ocorram diariamente no mundo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) 357 milhões de novos casos de IST foram reportados em 2012 na população de 15 a 49 anos, dos quais 78 milhões foram casos de gonorreia. O tratamento das ISTs é geralmente empírico, pela dificuldade de identificação dos agentes etiológicos e pela morosidade do resultado do teste de sensibilidade. Portando, estudos de vigilância de infecções por Neisseria gonorrhoeae são fundamentais para nortear o tratamento empírico desse agente que pode cursar com complicações como artrite, bacteremia e endocardite.
Segundo a OMS, a resistência do gonococo a diferentes classes de antibióticos como beta-lactâmicos, quinolonas e macrolídeos aumentou nos últimos anos. Alguns países já reportam isolados de Neisseria gonorrhoeae multirresistentes. Diante desse cenário, o guia da OMS publicado em 2016 passou a recomendar que o tratamento da gonorreia seja realizado com duas drogas (exemplo ceftriaxona 250 mg intramuscular em dose única mais azitromicina 1 g oral em dose única). A OMS alerta, entretanto, que cada pais deve ajustar o tratamento empírico de acordo com o perfil local de resistência.
Dados brasileiros de prevalência e sensibilidade de Neisseria gonorrhoeae são escassos. A professora Raquel Regina Bonelli, do Instituto de Microbiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro realizou um estudo de sequenciamento completo de genoma de isolados de gonococos identificados na cidade do Rio de Janeiro no período de 2006 a 2015, em colaboração com os Centers for Diseases Control and Prevention (CDC). Dados desse estudo publicados recentemente (Costa-Lourenço et al 2017) demonstraram sensibilidade reduzida a cefixima (cefalosporina de terceira geração oral) e não a ceftriaxona (cefalosporina de terceira geração endovenosa), alertando para a possibilidade de resistência às cefalosporinas nos isolados brasileiros. Outros achados interessantes como resistência às quinolonas e à azitromicina estão comentados a seguir na entrevista concedida pela professora Raquel.
Medscape: Qual foi o escopo do estudo?
Raquel Bonelli: Neste trabalho caracterizamos 116 amostras de Neisseria gonorrhoeae, que foram cedidas para nosso laboratório de pesquisa entre os anos de 2006 e 2015. Realizamos teste de concentração mínima inibitória para penicilina, tetraciclina, ciprofloxacina, azitromicina, cefixima e ceftriaxona e, em todas as amostras que apresentaram suscetibilidade reduzida ou resistência a estes antimicrobianos, pesquisamos os mecanismos moleculares associados. Também investigamos a diversidade clonal entre as amostras. Para tanto, realizamos, sequenciamento completo do genoma das 116 amostras, em uma parceria com os CDC.
Medscape: Quais são os prós e contras do sequenciamento completo?
Raquel Bonelli: A principal vantagem de realizar o sequenciamento do genoma destas amostras foi poder investigar vários aspectos de interesse simultaneamente. Os mecanismos de resistência a ciprofloxacina, azitromicina e cefalosporinas em N. gonorrhoeae são baseados em mutações em genes específicos, e não adquiridos por plasmídeos, como ocorre muitas vezes nas enterobactérias. Assim, seu estudo depende de dados de sequenciamento. Além disso, a partir do mesmo genoma podemos realizar tipificação das amostras por técnicas adequadas para monitoramento da diversidade entre as amostras, e também para comparação com linhagens internacionais, gerando informações de interesse regional e global. Se a proposta for fazer uma caracterização completa, o sequenciamento é mais barato e menos laborioso do que a utilização de técnicas mais convencionais. O ponto negativo de realizar tais análises por sequenciamento do genoma é a necessidade de formação de pessoal para trabalhar com o volume de dados gerados. São poucos os institutos de pesquisa que contam com bioinformáticos para dar suporte aos projetos. Uma alternativa é a aquisição softwares amigáveis, o que facilita a montagem e a análise dos genomas de tal forma que podem ser feitas por alunos de mestrado e doutorado.
Medscape: Quais foram os principais resultados deste trabalho?
Raquel Bonelli: Detectamos neste estudo taxas de resistência a penicilina, tetraciclina e ciprofloxacina acima de 40% desde 2006. Identificamos amostras resistentes a azitromicina ocorrendo de forma não clonal, e relacionada a diferentes mecanismos moleculares desde 2006, mas com concentrações mínimas inibitórias mais elevadas a partir de 2009. Também reconhecemos um conjunto de sete amostras pertencentes a um mesmo clone com suscetibilidade reduzida a cefixime, apresentando mecanismo de resistência compatível com a evolução de resistência para ceftriaxona. Duas destas amostras eram resistentes a todos os demais antibióticos testados. A tipificação por genoma completo evidenciou que as amostras resistentes aos antimicrobianos agrupavam-se em clones, ao contrário das amostras mais sensíveis, que apresentavam maior diversidade. Isto evidencia um risco de espalhamento de linhagens resistentes, o que pode ocorrer naturalmente mediante a pressão seletiva imposta pela antibioticoterapia.
Medscape: Qual o impacto destes resultados na saúde pública?
Raquel Bonelli: Nosso estudo chama a atenção para a necessidade de se implementar o uso de ceftriaxona combinada à azitromicina para o tratamento de gonorreia no Rio de Janeiro. Isto demandará investimento, uma vez que a ceftriaxona é um medicamento injetável. Mais que isso, os resultados que obtivemos evidenciam a necessidade de implantação de vigilância epidemiológica para este micro-organismo. Como nossas amostras foram provenientes de laboratórios de análises clínicas, e temos dados muito superficiais sobre os pacientes, não foi possível, por exemplo, reconhecer grupos de risco para infecção por linhagens resistentes. No entanto, é imprescindível que o Brasil passe a ter informações mais precisas sobre este cenário epidemiológico para a adoção de políticas públicas dirigidas. O risco da emergência de N. gonorrhoeae resistente a todos os antimicrobianos validados é real.
Medscape: Quais são os próximos passos do estudo?
Raquel Bonelli: Nossa coleção de amostras está sendo continuamente aumentada. Os próximos passos deste estudo estão focados no aprofundamento da caracterização de clones que se mostraram predominantes no Rio de Janeiro, bem como na caracterização de amostras coletadas nos anos de 2016 e 2017, principalmente no que diz respeito à resistência a azitromicina. Além disso, temos a expectativa de que o Rio de Janeiro venha a participar do SENGONO, um projeto de vigilância nacional, conduzido pelo Ministério da Saúde, em nova fase de implantação. Caso essa colaboração se concretize, teremos acesso a uma amostragem mais robusta do ponto de vista numérico, e acompanhada de dados mais úteis em estudos epidemiológicos.
Medscape: Quais os desafios para a implantação de estudos multicêntricos no Brasil?
Raquel Bonelli: O acesso dos programas de vigilância ao paciente com gonorreia é muito dificultado pela forma como a estrutura de saúde pública no Brasil é voltada para as ISTs, baseada em múltiplos postos de atendimento. Em geral, os pacientes são tratados de forma sindrômica, sem coleta de espécime para isolamento do micro-organismo. Mesmo na presença de tal coleta, o estudo de Neisseria gonorrhoeae depende de que a amostra seja semeada em meio de cultura apropriado dentro de, no máximo, seis horas. Isso, considerando a dinâmica das grandes cidades, é praticamente inviável na ausência de clínicas especializadas. Além disso, por ser tão sensível, N. gonorrhoeae demanda certa expertise na manipulação. Para a realização de estudos multicêntricos é necessário investimento em infraestrutura laboratorial, padronização e certificação de protocolos, e formação de pessoal em cada cidade sede, um esforço que deve ser contínuo. Neste sentido, considero relevante apoiar o programa de vigilância SENGONO, aumentando o número de cidades envolvidas, dando aporte financeiro e logístico para que a coleta de amostras seja possível, e fortalecendo a equipe de profissionais envolvidos. Só assim teremos a geração de resultados completos e abrangentes, que levantem de forma realista a situação da resistência em N. gonorrhoeae no Brasil.(Saúde247).
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