Num ambiente comparável a uma gangorra de profecias, após a primeira sessão de julgamento, o TSE adormeceu com a hipótese de que está em formação uma maioria de 5 votos a 2 favorável a absolvição de Dilma Rousseff e Michel Temer.
As incertezas sobre o desfecho do caso são imensas e compreensíveis. Na quinta-feira, o placar dizia que haveria uma dupla condenação, com o consequente afastamento de Michel Temer da presidência. No final do dia hoje, pode ser outro quadro.
Essas diferenças refletem o debate interno no TSE e, especialmente, uma situação política geral.
A imensa maioria da população não tem dúvida sobre o destino de Temer, que deve ser retirado do Planalto no plano mais rápido possível, sendo sucedido por um presidente escolhido por voto direto. Mas falta um acordo -- em degrau mais alto -- quanto a decisão. Não é justiça, nem ética, nem princípio. É calculo.
Num país que vive um ambiente de ebulição social, com uma terceira greve geral em perspectiva e grandiosos atos horizontais -- como o show de domingo em São Paulo -- em preparação, refletindo a adesão de novos setores sociais a mobilização, o descarte puro e simples de Temer representa uma ação de alto risco.
O que seria a simples demissão de um funcionário -- uma troca de garçom para carregar a bandeja das reformas -- pode se transformar numa crise capaz de bloquear a caminho das mudanças exigidas pelos patrocinadores do golpe e até abrir uma estrada para as diretas.
Esta é a situação nova, que produz incertezas e contradições profundas.
Até por cortesia, podemos fingir que as revelações gravadas por Joesley Batista provocaram uma indignação em senhores e senhoras que governam as Terras de Santa Cruz desde o desembarque de Cabral. Pela mesma razão, pode-se até dar a impressão de acreditar que a máquina capaz de articular um golpe parlamentar para derrubar a chefe de Estado da oitava economia do planeta nada sabia sobre as conexões de Michel Temer nos subterrâneos da política e até se esqueceu de consultar a página da Wikipedia que lhe é dedicada.
Sabemos que a questão de fundo, neste tapetão cuja função sempre foi negar a reeleição de Dilma, em 2014, abrindo caminho para bloqueio do governo e sua deposição, é de outra natureza. Há justiça e há política.
Um mês atrás, quando os grampos de Joesley ainda eram um segredo bem guardado, os donos e sócios do poder no Brasil puderam assistir de camarote aos movimentos de Temer para construir uma maioria segura no TSE. Só não aplaudiram demais porque ia ficar chato, um exagero na desfaçatez.
Num plenário de 7 votos, ele teve direito de afastar sobreviventes das indicações de Dilma para emplacar dois nomes de sua confiança. Com uma maioria folgada no bolso, todos pareciam mutuamente satisfeitos. Temer estaria seguro em sua cadeira, com auxílio de um tribunal capaz de consumar uma aberração chocante, mesmo para os tempos que vivemos: separar as candidaturas de uma chapa única para condenar o nome indesejável, mas escolhido pelo povo, e preservar o preferido pelo patamar superior da pirâmide.
Imaginava-se o julgamento em curso como o massacre final de Dilma, com novas lições de falso moralismo em horário nobre para consumar uma nova etapa no esforço de destruição da herança de Lula e do PT, aperitivo indispensável para enfrentar 2018 com alguma chance.
Para completar, não faltariam argumentos para alimentar a permanente campanha da turma dos 1% contra eleições em geral e o voto direto para presidente em particular.
Verdade que, por uns poucos minutos, na sessão de ontem, assistiu-se a um ensaio dessa natureza, típico de um tempo que passou com as delações de Joesley.
Um dos advogados do PSDB, Flávio Henrique Costa Pereira, subiu à tribuna para defender a seguinte ideia política-eleitoral. Denunciou que as inegáveis vitórias do governo Dilma contra miséria (ele falou em "fim de pobreza") não passaram de uma " mentira" construída pelo crime de "abuso de poder político". Disse que, em função disso, "a mentira venceu" em 2014. Em outra época, uma afirmação desse tipo poderia produzir gargalhadas de quem sente as durezas da vida de perto. Ou, pelo menos, réplicas e tréplicas, num país que, depois de usufruir dos melhores índices de emprego desde 1992, no governo Dilma, hoje encara o nível mais deprimente da história.
A situação agora é outra, sabemos todos. Caso venha a ser absolvida pelo TSE, Dilma não irá recuperar o mandato, que perdeu por decisão do Senado. Mas terá um certificado de inocência para enfrentar o massacre político de seu governo.
Transformado em alvo, com a cabeça cobrada pelos editoriais da Folha e do Globo, Temer reagiu como o espadachim de adaga curta que sempre foi.
A dança de opiniões no TSE reflete as incertezas sobre o comportamento dos ministros na hora de votar. Seria tão errado imaginar uma situação de votos de cabresto como apostar no distanciamento de uma utópica torre de marfim.
Exposta num tom nunca visto por nossos impérios midiáticos, a exigência de uma degola a qualquer custo mostra-se particularmente complicada para quem, até há pouco, estava com a preservação de Temer -- e era bem tratado por isso. Não é só.
As delações premiadas da Odebrecht e da dupla João Santana/Monica Moura, importadas pelo relator Herman Benjamin, envolvem denuncias ainda sob investigação, sujeitas ao contraditório e novas contestações. A noção de que "extrapolaram" a denuncia inicial, de abuso de poder econômico e eleitoral, não alimenta apenas a argumentação dos advogados ligados ao PT. Também encontra respaldo ao menos em parte do plenário. Impera ali a visão que elas não faziam parte da petição inicial e por isso não devem ser consideradas.
Também é preciso considerar o fator Gilmar Mendes, o presidente do TSE e uma das personalidades mais influentes do Judiciário. Adversário assumido das causas do PT nos tribunais desde a AP 470, Gilmar teve uma atuação essencial para que as ações contra Dilma no TSE, logo após a vitória, chegassem até aqui.
Mas ontem ele chegou a dizer que o fim da ação não é a cassação mas demonstrar como é o financiamento de campanha. Advogados presentes ao julgamento interpretam essa frase como um sinal favorável à absolvição.
No julgamento das contas, ainda no final de 2014, Gilmar fez um voto favorável mas com "ressalvas", janela jurídica necessária para a continuidade das investigações, que avançaram ao infinito de hoje. Mais tarde, quando surgiu uma nova hipótese, do caso ser arquivado, Gilmar formou uma nova maioria em plenário, para dar sequencia ao caso.
Em 2017, o respira-se outro oxigênio no país. O ambiente de conflito institucional escancarou-se. Diminuiu o consenso em torno da Lava Jato. Os críticos tem uma audiência muito maior do que o círculo dos atingidos que, por sinal, não para de se ampliar.
Gilmar tornou-se alvo do procurador Rodrigo Janot depois que, numa decisão de desempate, deu o voto favorável a José Dirceu, presos desde agosto de 2015 em Curitiba, num habeas corpus. Dias depois, Janot entrou com pedido no Supremo para que Gilmar fosse impedido de julgar um habeas corpus apresentado pelo empresário Eike Batista. Escalado para resolver o caso, o ministro Marco Aurélio Mello não escondeu o constrangimento: "É algo indesejável. Estou há 38 anos no Judiciário e nunca enfrentei uma exceção de suspeição, de impedimento de colega. É constrangedor e ruim para o Judiciário como um todo".
É nesta paisagem, de divisão e contradições profundas, que o julgamento chega ao segundo dia. Para quem imaginava um passeio, o horizonte é de águas turbulentas. (247).
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