Por Agência O Globo
No norte da Finlândia, um homem pesca um salmão. O peixe é grande, mas dois centímetros menor do que manda a regra. Ele solta o animal na água. Ninguém está vendo, não há fiscalização. Apenas devolve o peixe “porque se todos pescarem assim, no futuro vai faltar”.
A história é citada pela professora e cientista de dados Sara Kfouri Koskinen, que é casada com o finlandês pescador e mora no país há quatro anos. Esse é apenas um exemplo de uma lista que ela conta quando se pergunta sobre a honestidade naquelas terras frias. Esqueceu o celular no mercado? Devolvido na hora. Perdeu a luva na rua? Está pendurada na altura dos olhos, no mesmo local. Fez uma compra online? Pega na caixa de correio e deixa o dinheiro ali mesmo. A porta de casa? Sempre destrancada. Ouviu um elogio? É de verdade.
— A questão da honestidade é uma das coisas de que mais gosto aqui. As relações são muito mais francas, eles falam o que pensam, não tem joguinho. Há segurança em todos os aspectos da minha vida, me sinto protegida por essa cultura. A honestidade faz com que eu tenha tranquilidade e paz — conta Koskinen.
O relato também faz entender de forma mais clara como o conceito entra como um critério no ranking dos países mais felizes do mundo, em que a Finlândia foi vencedora pelo quinto ano consecutivo há poucos dias.
Segundo especialistas, apoio social, honestidade e generosidade seriam as chaves para esse bem-estar.
O relatório da felicidade mundial, que está no décimo ano, é baseado na avaliação das próprias pessoas sobre sua felicidade, bem como em dados econômicos e sociais. Ele atribui uma pontuação de felicidade em uma escala de zero a 10, com base em uma média de dados ao longo de três anos.
Os moradores do Norte da Europa dominaram os primeiros lugares, com a Dinamarca em segundo, seguida pela Islândia, Suíça e Holanda. O Afeganistão estava em último lugar (o ranking foi elaborado antes da invasão da Ucrânia pela Rússia).
Não se trata de uma exigência apenas para governantes, mas de uma ideia que perpassa toda a população e cria um forte senso de comunidade. E, de acordo com estudos e especialistas, essa segurança também faz bem para a saúde.
Um estudo feito com 110 pessoas ao longo de dez semanas pela Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, mostrou que pessoas que conseguiram reduzir o número de mentiras que contam no dia a dia relataram uma melhora significativa na saúde física e mental no período.
Por exemplo, quando os participantes contaram três mentiras brancas a menos do que nas outras semanas, experimentaram menos quatro queixas de saúde mental, como sentir-se tenso ou melancólico, e três menos queixas físicas, como reclamar de dores de garganta e de cabeça.
O que a Finlândia tem? País é eleito o mais feliz do mundo pelo quinto ano consecutivo
Segundo os pesquisadores, uma das principais vantagens relatadas pelos voluntários foi não precisar lidar depois com o estresse e ansiedade gerados por uma mentira, já que muitas vezes as pessoas precisam lembrar do que disseram ou até contar alguma mentira adicional para manter a original.
Para o psiquiatra Guilherme Spadini, professor da The School of Life, há dois aspectos a serem compreendidos sobre o conceito de honestidade. O primeiro é o valor social, que traz coisas boas para toda a sociedade, como segurança, menos ansiedade e medo e que, obviamente, impactam na saúde física e metal.
— Essa coisa da pessoa poder se dar bem, do malandro, traz ganhos no curto prazo e individuais. Mas a vantagem de viver num lugar em que você não espera o tempo todo que alguém vai te passar a perna, o ganho disso é infinitamente maior — analisa.
Porém, o psiquiatra reforça que há, também, um aspecto pessoal, de como ser honesto pode contribuir para o bem-estar individual.
— Quando a honestidade é vista como uma virtude pessoal traz bem-estar, porque passa a ser encarada como algo que você confia em si mesmo, uma força de caráter, e isso tem associação muito próxima com felicidade. Não com aquela ideia de estar feliz o tempo todo, num estado de prazer, mas a capacidade de enfrentar momentos difíceis e ainda assim ter algo que te sustenta, uma força interior — explica Spadini.
O professor de psicologia e escritor Robert S. Feldman diz que as pessoas mentem muito: entre duas e três vezes em uma conversa de apenas 10 minutos.
Já a principal autora do estudo da Universidade de Notre Dame, Anita Kelly, estima que, ao longo de um dia, uma pessoa minta, em média, 11 vezes. Segundo ela, “ser honesto é um processo”, mas vale a pena.
“Pode não ser fácil ‘sempre querer dizer o que você fala’. Você pode precisar voltar atrás e corrigir algumas das coisas que saem da sua boca. Mas não deixe que isso o desanime. Ser sincero é um processo e você chegará lá com a prática. E quando o fizer, verá que está se tornando mais humilde, mais aberto ao aprendizado e menos sensível à rejeição. Ser sincero o aproxima das pessoas decentes, afasta os pessimistas, e permite que você sinta uma certa esperança em relação ao mundo. Quando você experimenta esse sentimento, acredito que também terá profundos benefícios para a saúde”, escreveu Kelly em seu estudo.
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