Da produção ao transporte e à oferta, imunizante deve ser armazenado na temperatura correta. Veja as diferenças entre os produtos que estão sendo desenvolvidos.
Entre novembro e dezembro de 2019, aparecia na China um patógeno desconhecido capaz de gerar uma infecção altamente transmissível que, em nove meses, se espalharia pelos cinco continentes, deixando mais de 1 milhão de mortos. Hoje, um ano depois, o mundo começa a ver uma perspectiva de saída da pandemia de Covid-19, a doença provocada pelo novo coronavírus, o Sars-Cov-2.
Pelo menos cinco farmacêuticas estão concluindo a produção de vacinas, que deverão proteger a população mundial da síndrome respiratória. Agora, o próximo passo é a distribuição. Uma tarefa não muito simples que, aqui no Brasil, ainda esbarra em uma crise política.
Por trás da injeção que a gente toma no posto de vacinação, há um desafio muito maior que envolve um intenso trabalho de logística. Após a criação e produção do imunizante, é preciso garantir o transporte e o armazenamento da vacina nas condições corretas de conservação para que o produto seja distribuído sem perder a qualidade.
Além disso, as unidades encarregadas de atender a população devem estar equipadas com os insumos para a aplicação das doses, incluindo suprimentos básicos como seringas e equipamentos de proteção individual (EPIs) para os profissionais de saúde.
Entre as condições de manutenção das vacinas, a temperatura em que elas são armazenadas é fundamental, um cuidado que precisa ser mantido do laboratório onde foram produzidas até a clínica onde serão aplicadas, passando pelo meio de transporte. E essa temperatura de conservação é diferente em cada produto.
Entre os imunizantes que podem ser distribuídos no Brasil, estão as da Sinovac, farmacêutica chinesa que produz a Coronavac em parceria com o Instituto Butantan (SP); da Oxford/AstraZeneca, desenvolvida com o Governo Federal por meio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); e da Pfizer/BioNTech (EUA e Alemanha). As duas primeiras podem ser guardadas em refrigeradores comuns, de 2º C a 8 ºC. A última, porém, é mais complexa de se conservar, exigindo uma refrigeração a -70 ºC (veja infográfico abaixo).
Essa diferença se dá pela natureza química da formulação de cada vacina, já que os métodos de produção variam de laboratório. Para gerar a resposta imune que vai neutralizar a ação do vírus, o imunizante utiliza uma proteína do material genético do coronavírus, o RNA. Mas a forma como essa substância vem muda conforme o produto.
“As vacinas de RNA são como o vírus. Só que o vírus está dentro de uma cápsula que protege as moléculas de se degradarem. A da Pfizer usa o RNA puro e, por isso, para se manter estável, precisa ficar em uma temperatura muito baixa”, detalha o virologista Ernesto Marques, pesquisador titular do Instituto Aggeu Magalhães (Fiocruz-PE).
A outra vacina americana, da farmacêutica Moderna, é parecida com a da Pfizer, mas nela se utiliza um fragmento do RNA com uma pequena proteção, o que a permite ser mantida a -20 ºC. “E tem as chamadas vetores virais, caso da Oxford/AstraZeneca”, acrescenta o pesquisador. “O RNA do Sars-Cov-2 vem dentro da cápsula de proteína de outro vírus, o adenovírus. Essa cápsula protege bem o RNA e pode ficar em um refrigerador comum”.
De todas, a da Pfizer é a que está mais avançada, porque foi aprovada em três países - Reino Unido, Bahrein e Canadá - e já começou a ser ofertada no país europeu. O Brasil também pode adquirir o imunizante e está em negociação com a farmacêutica. O problema é que não há refrigeradores que operem a -80º C em quantidade suficiente para todo o território nacional.
“A capacidade de manter essa temperatura existe no País, mas [o acesso à vacina] ficaria mais restrito aos grandes centros e seria preciso adquirir esses refrigeradores todos. Isso levaria um tempo, embora o custo não seja proibitivo”, observa o cientista Ernesto Marques. “Para acelerar o processo de distribuição, seria mais vantajoso ter vários [de vacina] que acondicionem de formas diferentes. Mas tudo converge para um gargalo comum. Todas vão precisar de agulha, seringa, álcool, luvas, uma pessoa que injete... O refrigerador de -80 ºC é só um problema a mais”.
O secretário de Saúde de Pernambuco, André Longo, também defendeu que o País obtenha o maior número possível de imunizantes, independentemente da origem.
“É certo que a disponibilidade de vacinas Pfizer não será maior no primeiro momento. É por isso que é desejável que o País adquira várias matrizes. Então, as vacinas que forem surgindo e houver disponibilidade para o Brasil, é importante pegar várias”, afirmou o gestor, acrescentando que, devido à peculiaridade da refrigeração, a aplicação do produto pode ficar mais restrita aos grandes centros urbanos. “Mas é preciso mesclar todas as vacinas disponíveis. Já há uma clareza de que não há impeditivo logístico para utilização, por exemplo, nas cidades maiores”.
Vacina contra a Covid-19 (Foto: Bruno Rocha/Fotoarena/Folhapress)
Corrida da vacina
Garantir essa estrutura requer planejamento e execução de políticas públicas. Por isso, a imprensa acompanha, em detalhes, as negociações entre os governantes para não só adquirir a vacina como gerenciar dessa logística. Isso porque, nas palavras da cientista política Priscila Lapa, o imunizante tornou-se “o ouro” destes tempos de Covid-19.
“Fica muito evidente que, aproveitando o vácuo de atuação do Governo Federal, os governadores, em especial João Doria (SP), que tem uma estrutura institucional para isso, tomaram a dianteira para ocupar esse espaço. Imagino que, se o Governo Federal tivesse assumido esse protagonismo, haveria, certamente, um discurso de cooperação entre os atores de que se conseguiu trazer essa vacina percebida como a grande solução”, analisa.
Os embates entre o presidente da República e o governador paulista vêm de desde o começo da pandemia, quando Bolsonaro colocou-se a favor da flexibilização das medidas de isolamento e distanciamento social sugeridas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e adotadas pelos chefes dos Executivos estaduais.
Ao passo que os estudos sobre as vacinas foram avançando, a tensão cresceu em torno da escolha do imunizante que será distribuído no País. Enquanto o Governo Federal aposta no produto da Oxford/AstraZeneca, o governo paulista fechou parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac para produção da vacina Coronavac pelo Instituto Butantan.
Foi esta última que ficou pronta primeiro. Doria anunciou o início da produção da Coronavac a partir da última sexta-feira, com capacidade de fabricação de 1 milhão de doses por dia. Assim, aumenta a pressão para que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprove o imunizante.
Para isso, falta, segundo o órgão regulador, a apresentação dos dados da fase 3 dos testes com o produto, o que o instituto paulista pretende fazer até 15 de dezembro. Já em relação à vacina desenvolvida pelos britânicos, foram detectadas falhas nas pesquisas, o que atrasou a previsão de conclusão dos estudos. A expectativa é que ela seja lançada até março.
Governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e a vacina Coronavac (Foto: Divulgação/Governo de São Paulo)
Apesar disso, o Governo Federal não emite sinais claros de que vai adquirir a vacina do Instituto Butantan. Lá fora, a corrida envolve ainda o imunizante da Pfizer, que já começou a ser distribuída no Reino Unido, além da russa Sputnik V, escolhida pelo governo de Alberto Fernández para ser aplicada na Argentina.
A demora em detalhar um plano para a campanha de imunização aqui no Brasil alarmou os governadores, que se reuniram, na última terça-feira, com o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. Depois do encontro, marcado por um bate-boca entre o gestor federal e o governador João Doria, Pazuello disse que, tão logo saia a aprovação da Anvisa, a vacinação no País pode começar ainda neste mês.
Como pano de fundo, está a disputa de narrativas para as eleições de 2022. “Bolsonaro realmente apostava que a vacina seria algo distante ou não provocaria o efeito em curto prazo. Ele perdeu o protagonismo, que pode ser recuperado a partir uma decisão de fazer os investimentos corretos. Se o governo de São Paulo conseguir o pioneirismo, isso dá visibilidade, embora não garanta a eleição de ninguém”, observa Priscila Lapa.
“Mas acho que essa disputa ainda tem vários capítulos, até porque o presidente Bolsonaro não confia na vacina. Ele quer se isolar como sendo a visão hegemônica, o que é muito típico do comportamento de Bolsonaro, que prefere estar errado, mas sozinho, a ter que compartilhar resultados com qualquer outro ator político”.
Ainda na visão da especialista, a postura do presidente pode mudar caso perceba que a vacinação pode aumentar sua popularidade.
“Por enquanto, é tudo discurso, mas, à medida que a vacina for chegando na ponta, as pessoas forem se sentindo protegidas, ele vai ser o primeiro a dizer que apoiou a vacina. No momento em que a gente torna isso uma questão política, deixa de enxergar os espaços de uma decisão técnica. Estamos falando de um país extremamente complexo para vacinar a população em larga escala”, afirma a cientista política.
Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde informou, por meio de nota, que está em tratativas para a compra de 70 milhões de doses da vacina Pfizer/BioNTech. “O Ministério tem interesse em adquirir todas as vacinas que apresentarem segurança e eficácia e que sejam registradas na Anvisa”, afirma o texto.
Sobre a estrutura de refrigeradores, a pasta diz estar investindo mais de R$ 59 milhões para o Programa Nacional de Imunização (PNI) e que os recursos serão usados para reforçar a Rede de Frio, que inclui o processo de armazenamento, conservação, manipulação, distribuição e transporte dos imunizantes.
Gelo-seco é utilizado para transportar materiais a temperaturas negativas (Foto: Saul Loeb/AFP)
A temperatura e o desafio do transporte
Um ponto crucial no processo de garantir a segurança da vacina é o transporte. No caminho que parte do país de origem e segue até os postos de saúde, o imunizante deve ser armazenado nas condições corretas de conservação.
O princípio vale tanto para o percurso internacional quanto para a distribuição entre os estados e municípios. No caso do produto da Pfizer/BioNTech, o desafio é grande em função da necessidade de mantê-lo a -70 ºC. Mas não é impossível.
Para o engenheiro mecânico Fernando Mota, diretor-executivo da Carbo Gás, empresa que atua na área de extração e transporte de gás carbônico liquefeito para o setor industrial, a solução está no gelo-seco (veja como ele é produzido no infográfico abaixo). Uma alternativa viável do ponto de vista logístico e econômico.
“Enquanto o gelo que se usa em casa fica em torno de 0 ºC a -2º C, dependendo do refrigerador, gelo-seco tem uma temperatura de -79 ºC. Não tem a dificuldade [de transportar a vacina]. Nós temos a solução em quantidade para o Brasil todo”, afirma.
Entre as vantagens desse material, segundo ele, está a capacidade de sair do estado sólido diretamente para o gasoso. “O gelo comum, quando derrete, vira líquido. O gelo-seco sublima, não deixa resíduo e dura muito tempo, dependendo da quantidade, até 48 horas. Então, você faz blocos da espessura de um tablet, que são colocados no avião e servem para conservação de alimentos, órgãos e plasma”, diz.
Já o virologista Ernesto Marques, pesquisador da Fiocruz-PE, considera que, para transportar objetos a esse grau de temperatura, é utilizado o nitrogênio líquido.
“Colocam-se, dentro dos contêineres, termômetros que medem a temperatura o tempo todo. E os indicadores mudam de cor se a temperatura subir acima de um determinado nível por mais de alguns minutos nas caixas onde as vacinas são armazenadas”, explica. (Por Artur Ferraz/folhape)
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