Por Fabio Nóbrega
“Cidade aquacêntrica de alguns milhões de habitantes”. É assim que o projeto colaborativo Recife Exchanges chama a capital pernambucana, a mais vulnerável das capitais brasileiras às mudanças climáticas e ao avanço do nível do mar. No ranking global, a “Veneza Brasileira”, cortada por rios e mangues e banhada pelo Oceano Atlântico, ocupa o 16º lugar, segundo relatório mais recente do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado em agosto.
As próprias características geográficas do território do Recife, que cresceu dando as costas para as suas águas, potencializam o seu status de risco. A combinação de baixa topografia, intensa urbanização, alta densidade demográfica, histórico de ocupação desordenada e elevados valores ecológicos, turísticos e econômicos transformam a cidade em um caso raro de suscetibilidade à crise climática, com a possibilidade, até mesmo, de ficar submersa caso nada seja feito.
O IPCC indicou que a atividade humana está provocando alterações no clima do planeta de forma sem precedentes e, além disso, algumas das mudanças já atingiram um patamar irreversível. Entre as principais considerações apontadas pelo relatório, estão o aumento do nível médio do mar, que subiu mais rápido desde 1900 do que em qualquer outro século nos últimos 3 mil anos; e a elevação da temperatura da superfície terrestre, mais rápida desde 1970 do que em qualquer outro período de 50 anos visto nos últimos 2 mil anos.
O professor Marcus Silva, do Departamento de Oceanografia e vice-coordenador do Centro de Estudos Avançados da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), destaca que uma das principais preocupações para o Recife neste contexto de mudanças climáticas é que a cidade está muito próxima do nível do mar e todas as soluções precisam partir desse ponto.
“O Recife tem uma densidade demográfica muito alta e a ocupação é muito próxima da costa. Isso gera um estresse muito grande, porque toda a infraestrutura da cidade está muito próxima do mar, o que causa problema de abastecimento, geração de energia e tratamento de esgoto”, cita o professor, que ainda sentencia: “A gente tem muito ribeirinho, uma população pobre que mora nessa situação. Temos toda uma planície que acompanha os rios e a economia da cidade gira em torno de ilhas”.
“Não podemos perder a esperança. Estamos recebendo a consequência da imprudência de gerações anteriores, mas essa geração da gente tem o poder de transformar e não adianta jogar a responsabilidade para frente. Ninguém quer arcar com qualquer custo e termina transferindo a responsabilidade para outra gestão, outro momento. A gente ocupou um território que era marinho e agora a gente está pagando esse preço”, alertou o professor.
Intrinsecamente costeira e com uma planície central pouco acima do nível do mar, o Recife tem uma população estimada em 1.653.461 pessoas, segundo dados de 2020 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A cidade é, inclusive, a capital de estado mais antiga do País, pois sua fundação remonta a 1537, quase 500 anos atrás.
O geólogo e pesquisador do Climate Lab da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) Fábio Pedrosa reitera a necessidade de urgência para um novo olhar sobre o Recife e suas problemáticas de origem natural, geológica e topográfica.
“A cidade precisa se preparar melhor revendo e discutindo de forma muito séria e elaborada a diferença entre crescimento econômico e desenvolvimento. Se não tivermos competência técnica e social de entender, não temos condição, enquanto cidade, de enfrentarmos a questão da elevação do nível do mar”, alertou.
“Este é um importante projeto para a cidade e a gestão está empenhada em colocá-lo em prática o mais breve possível, mas com muita segurança para evitar danos colaterais que ocorreram em outras cidades”, informou a prefeitura.
Marcus Silva destaca que esse tipo de projeto precisa entrar como política pública da cidade e não apenas de uma gestão, para que haja continuidade e transferência de responsabilidade entre os gestores.
“Temos que respeitar o espaço da praia e estamos sofrendo muito por termos ocupado. A Região Metropolitana do Recife avançou para o nível do mar. Se pegar qualquer outra orla, como Natal, João Pessoa e Maceió, há uma ocupação de orla diferente da nossa aqui. Temos que engordar [a praia], mas há um custo de manutenção porque isso não vai se manter”, frisou o professor.
Além disso, o especialista destaca que o projeto não pode ser fruto da decisão de apenas um município, mas algo integrado, em um contexto metropolitano e estadual. “Não é só responsabilidade do Recife. A gente resolve o problema da gente e o problema dos outros termina contaminando. Precisamos de uma solução integrada e pensada num contexto um pouco maior. Você tem o mesmo problema em Olinda, Jaboatão e Paulista. Se você atua de forma errada, termina transferindo o problema para outro”, pontuou Marcus Silva.
“Os manguezais fornecem uma proteção natural contra ressacas marinhas, avanço do mar e erosão costeira. A própria estrutura dos manguezais faz com que consigam absorver excedentes de águas tanto marinhas, quanto fluviais e pluviais [águas de chuvas]”, reforçou Fábio Pedrosa, que completou:
“Precisamos entender a importância para uma cidade com as características do Recife para a preservação dos manguezais remanescentes que ainda temos. Precisamos levar isso a sério como cidade que almeja chegar aos 500 anos com condições mínimas de habitação”.
Além disso, também é necessária a discussão sobre a ocupação irregular e desordenada do sítio urbano recifense, por exemplo, nas áreas estuarinas, onde há a presença de uma população mais pobre e vulnerável. “É um desafio de toda a sociedade, não é uma discussão de ambientalista. Temos que ter uma sociedade mais participativa”, arrematou.
Por fim, o professor destaca que os problemas ambientais se relacionam e não podem ser mais abordados apenas pelos ambientalistas engajados na discussão, já que são reflexo de um modelo predatório e desenfreado de utilização dos recursos naturais e de ocupação indevida de áreas ambientalmente frágeis, como os próprios manguezais.
“A cidade vem se estabelecendo como exemplo de compromisso e de agenda climática forte e desenvolve políticas públicas locais que pautam o debate sobre a temática no Brasil. Ao longo dos últimos anos, a cidade vem adotando uma série de medidas através de um planejamento público para mitigação dos futuros impactos de forma coordenada, integrada e em parcerias locais e internacionais”, destacou a gestão, em nota.
“Outras ações já foram desenvolvidas pela prefeitura, como a expansão da cobertura vegetal por meio do replantio de árvores com o consequentemente aumento no percentual de áreas permeáveis na cidade, além de altos investimentos em infraestrutura de drenagem e manejo de águas pluviais pautadas pelo Plano Diretor de Drenagem e Manejo de Águas Pluviais Urbanas combinadas com a Lei do Telhado Verde e reservatórios de retenção, que cooperam com o aumento da capacidade de recebimento do sistema de drenagem público, tornando-o mais eficaz, mitigando a ocorrência de alagamentos”
A Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SMAS) trabalha atualmente no desenvolvimento do Plano de Adaptação Setorial do Recife (PASR). O trabalho, que deverá ser entregue em março de 2022, trará ações, medidas e recomendações de adaptação para a cidade do Recife em quatro eixos estratégicos: Economia, Transformação Urbana, Mobilidade Urbana e Saneamento.
“Este plano está sendo construído tendo como norteadores importantes instrumentos como, por exemplo, o Plano de Baixo Carbono do Recife, a Análise de Riscos e Vulnerabilidades Climáticas e Estratégia de Adaptação do Município, o PLAC e o Plano Diretor do Recife, que foi recentemente revisado em consonância com os instrumentos da gestão sobre mudança do clima”, acrescentou a gestão municipal.
O trabalho é desenvolvido em parceria da SMAS com a Agência Recife de Inovação e Estratégia (Aries), Governos Globais pela Sustentabilidade (Iclei) e o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações.
A cúpula pretende subsidiar, a partir das constatações do relatório do IPCC, a reflexão e a concepção de soluções para orientar ações de cunho prático na condução das políticas públicas no campo do urbanismo, da conservação do patrimônio e da sustentabilidade urbana.
Os participantes debateram quais as visões de futuro e as melhores estratégias urbanas para prevenir que o Recife, e consequentemente seus patrimônios culturais, materiais e naturais, sejam submersos.
“Precisamos convocar e envolver, de forma mais ampla possível, toda a sociedade brasileira e todos os nossos parceiros internacionais com o objetivo de refletir sobre os diferentes conhecimentos através dos saberes científicos e populares para, juntos, encontrarmos os caminhos mais pertinentes para não permitir que o Recife, a capital mais antiga do Brasil, e tantas outras cidades percam significativas partes do seu patrimônio simplesmente embaixo das águas”, explica o coordenador geral do evento, o professor Roberto Montezuma, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE.
A segunda etapa do evento ocorrerá em 2022, com a investigação de um caso nos Países Baixos.