Confesso que não fiquei surpreso com a decisão de ontem, quando a Câmara de Deputados rejeitou a proposta de investigar Michel Temer pelo crime de corrupção passiva.
Jamais acreditei que isso fosse acontecer. Com mais de 40 anos de jornalismo, me pergunto quantas pessoas estão sendo sinceras quando se dizem decepcionadas com a decisão. Quantas podem dizer, sinceramente, que esperavam outra coisa? Quantas perderam o sono?
Não se pense que estou me referindo a "este Congresso".
Também discordo de uma personalidade pública respeitável, como a atriz Patrícia Pillar, que resolveu acusar a "maioria" do povo brasileiro de "conivência" -- uma denúncia de natureza moral – "com o banditismo."
A verdade é que muitas pessoas tem uma dificuldade imensa para reconhecer um fato banal: nas sociedades contemporâneas, a moral está e sempre esteve subordinada à política.
A experiência dos brasileiros ensina que os valores morais podem ajudar a reparar injustiças – e também podem servir para acobertar barbaridades imensas, como a perseguição a Getúlio em 1954 – mas não são eles que movem as rodas da história.
Este é o papel da política – que as campanhas que colocam a moral em primeiro lugar pretendem e muitas vezes conseguem sufocar.
Examinando os fatos com alguma frieza, é absurdo imaginar que Michel Temer pudesse ter o mesmo destino dos dois antecessores comparáveis.
Dilma Rousseff foi deposta – por um pretexto cínico, arranjado – quando perdeu sua base social original, a única que poderia lhe dar sustentação política. Fernando Collor enfrentou uma investigação de outra qualidade, com elementos consistentes. Mas seu governo desmoronou quando tentou se transformar num pequeno Bonaparte sem dispor de instrumentos para tanto.
Acusado de crimes de uma gravidade muito maior, que sequer poderia ser comparada à dos casos anteriores, Michel Temer conseguiu, ontem, uma proeza em outro nível: nem será investigado.
Não é pouca coisa, convenhamos. Mas é o que se espera, quando se avalia seu desempenho político. Temer não é um gênio dos bastidores de Brasília. Não descobriu o poder mágico das emendas parlamentares. Nem fala pela maioria do país, obviamente, mas por 1% dos 1%.
Faz o impensável, porque o mais simples. É um lacaio dos grandes interesses que comandam o Estado brasileiro há cinco séculos, que é capaz de defender sem a má consciência dos indecisos, sem o escrúpulo daqueles que conservam uma mancha, mesmo pequena, de humanidade. Não vacila uma vírgula, não recua um centímetro. Entende os sinais, evita ruídos. Envia mensagens chocantes pela crueza e falta de empatia com o sofrimento daqueles que irá prejudicar. Com um rosto que é uma máscara, disse que não temia a impopularidade e mostrou que falava sério.
Do ponto de vista da democracia, é um monstro.
Mas é exatamente isso o que se espera dele.
Foi este retrato sem retoques que se pode ver ontem.
Num país que em 1988 fez uma Constituição que abriu espaço a cidadania de 200 milhões de brasileiros e deixou um lugar inédito para o reconhecimento dos direitos dos trabalhadores e da população pobre, a permanência de Temer representa um passo na formação de uma ditadura de classe escancarada, sem direitos nem conquistas que diminuem a dor dos que sempre sofreram.
Confirma a noção de quem uns – e só estes – tem mais direitos do que outros.
É a imoralidade em estado bruto, aquele estado de barbárie em que a desigualdade entre os homens passa a ser tratada como um elemento da geografia e não da história, da genética e não da cultura, da natureza e não da sociedade. (247).
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