Nesta quarta-feira (23), o Instituto Butantan adiou a divulgação dos dados finais da fase três dos testes clínicos da Coronavac, a vacina contra a covid-19 desenvolvida em parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac. Em coletiva de imprensa, porém, o Butantan garantiu que a eficácia da vacina foi comprovada.
O adiamento se deu após uma solicitação dos dados pela agência sanitária do governo chinês, que pretende alinhar as informações para certificar a vacina. O prazo divulgado pelo governo paulista é de até 15 dias para a conclusão do processo. Apesar disso, o plano de vacinação do estado foi mantido, com previsão de início da imunização para o dia 25 de janeiro.
Mesmo com o grande número de mortos pela pandemia no Brasil - quase 190 mil - a Coronavac ganhou mais destaque ao longo do processo dos testes clínicos não pelo impacto sobre a pandemia, mas principalmente pela disputa política tendo de um lado o governador paulista, João Doria (PSDB), e de outro presidente brasileiro Jair Bolsonaro (sem partido).
A Coronavac tornou-se protagonista de uma disputa política particular entre o governador Doria e o presidente Bolsonaro, que apostou unicamente na vacina desenvolvida pela AstraZeneca ao lado da Universidade de Oxford, cujo calendário de testes sofreu atrasos.
Para o cientista política Cláudio Couto, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a eventual aprovação da Coronavac se tornará um trunfo político para o governador Doria na disputa com o presidente brasileiro Jair Bolsonaro (sem partido), que não esconde a falta de simpatia com a vacina do Butantan e já comemorou a morte de um voluntário dos testes. Segundo o professor, nesse processo Doria foi transformado por Bolsonaro em seu inimigo e agora o presidente vive um dilema diante da possível aprovação da vacina.
"[Bolsonaro] fica em uma situação de muito constrangimento porque, em uma sinuca de bico, porque ele não pode também recusar usar essa vacina se ela for uma vacina de eficácia comprovada. Então, o que o Bolsonaro fez até agora foi uma tentativa de desacreditar essa vacina, criar uma aura de desconfiança em torno dela", avalia Couto em entrevista à Sputnik Brasil.
Uma pesquisa do Datafolha mostrou que esse esforço pode ter surtido efeito na população. O levantamento mostra que a Coronavac, associada à China, é a vacina que gera mais desconfiança entre os brasileiros. O governo de São Paulo, por sua vez, passou a caracterizar o imunizante como "vacina do Butantan" ou "vacina no Brasil", na tentativa de ressaltar o trabalho do centro de pesquisa brasileiro e desassociar o fármaco da China. Para o professor Cláudio Couto, ambos os governantes travam uma disputa de narrativas.
"Mais do que propriamente se preocuparem, os dois governos, em terem uma vacina porque ela resolve um problema de saúde pública, eles se preocupam em batalhar em torno da vacina muito mais pelo tanto que eles conseguem desconstruir o seu adversário e construir a si mesmos. Essa é a lógica que está operando hoje", aponta o cientista político.
Apesar disso, houve recuos do governo federal e na semana passada a Coronavac foi incluída no plano de vacinação do Ministério da Saúde, que disse que dará prioridade a quaisquer vacinas produzidas no Brasil, após a aprovação da Anvisa. A pasta também está negociando a compra do imunizante. Por ora, a expectativa do Instituto Butantan é que 10,6 milhões de doses da Coronavac estejam disponíveis até o final de dezembro. Para o professor Cláudio Couto, a politização da vacina tem como responsável principalmente o presidente Jair Bolsonaro. Nessa situação, para ele, o estrago só não foi maior devido à ação das instituições.
"O problema é menos, desse ponto de vista, das instituições, e mais do comportamento desse ator político chave, que é o presidente da República. E aí eu até diria: o estrago só não é maior, porque a estrutura institucional, de alguma forma, contém os excessos do presidente da República. Não quer dizer que não haja danos nessa maneira de agir dele. Provoca danos sérios, pessoas morrem sem necessidade, você desorganiza a administração pública, mas o estrago só não é maior porque há instituições que ainda têm funcionado para contê-lo. Essa é a situação que a gente vive hoje", avalia.
Em meio às posições erráticas do governo federal durante a pandemia, alguns governadores e prefeitos anunciaram apoio a João Doria e demonstraram interesse pela Coronavac.
O cientista político Cláudio Couto aponta que a articulação de Doria com outros estados e municípios fora de São Paulo para uma eventual distribuição da vacina sem o governo federal fortalece a imagem do governador paulista, que deve ser candidato a presidente em 2022. Segundo Couto, o sucesso da Coronavac pode tornar o governador o "cara da vacina", o que seria uma grande vantagem política.
Mesmo assim, ainda que em um dos lados de uma disputa frontal com o presidente, o passado como aliado de Bolsonaro continua presente, acredita o cientista político, que lembra que nas eleições de 2018, Doria fez campanha sob o slogan "BolsoDoria", em apoio aberto à candidatura de Bolsonaro.
"Claro, ao se tornar inimigo do Bolsonaro ele, de alguma maneira, afasta essa imagem, mas ela tende ainda a ser muito explorada pelos seus adversários. Porque foi um uso explícito e talvez, você possa dizer, muito oportunista do 'BolsoDoria'. Então, acho difícil ele simplesmente se livrar disso. Isso talvez vá ser lembrado, inclusive, para apontar que ele não é tão anti-Bolsonaro", afirma.
Virologista: pandemia deve piorar no Brasil
Em meio à disputa política em torno da iminência da aprovação de uma vacina no Brasil, a pandemia segue avançando. O número de casos e mortes ligadas à COVID-19 no país cresceu nas últimas semanas, voltando a superar a marca de mil óbitos diários.
Para o virologista Maurício Nogueira, tendo em vista que a eventual vacinação levará meses para ser concluída, a tendência é que o quadro da pandemia no Brasil se agrave nas próximas semanas e que "provavelmente" as mortes voltem aos patamares mais altos. O dia com maior registro de mortes no país foi o dia 24 de setembro, quando 1.703 óbitos foram confirmados, conforme os dados da Universidade Johns Hopkins.
"A previsão é que se tenha um aumento significativo de casos nos próximos meses por uma total falta de controle da população de tomar as medidas que já são colocadas faz tempo e do governo de não tomar nenhuma medida mais proativa. O fato de que nós estamos nos aproximando de termos as vacinas disponíveis não significa que elas vão estar disponíveis para a população no curto prazo. Isso vai demorar um prazo para acontecer, mas parece que, em geral, no Brasil, se decretou o fim da pandemia no comportamento da população", afirma Nogueira em entrevista à Sputnik Brasil.
Nogueira afirma que para frear o avanço da doença no país serão necessárias medidas que já deveriam ter sido tomadas, como restrições à circulação de pessoas para impedir a disseminação do vírus. Mesmo com o crescimento dos casos, poucas medidas foram tomadas e cenas com aglomerações no transporte público, praias e bares se tornaram comuns para os brasileiros.
"Não é feito nada. O governo federal não toma iniciativa nenhuma e também não dá exemplo e os governos estaduais não parecem dispostos a tomar medidas drásticas porque isso tem impacto importante na economia. Acho que o Brasil resolveu optar, de certa forma, pela economia, ao invés da vida", aponta o virologista.
Com a situação se deteriorando, mutações do vírus têm causado apreensão. Recentemente, o Reino Unido registrou uma nova variante do SARS-CoV-2 e diversos países europeus interromperam o tráfego aéreo com os britânicos. Nogueira alerta, porém, que mutações do vírus são comuns e que não há provas ainda de que as variantes descobertas impactam diretamente na transmissão do novo coronavírus.
"O aumento no número de casos na Europa tem a ver muito mais com o inverno europeu e também o relaxamento da conduta do que com isso. Não está provado. Como virologista, isso não me assusta em nada. Isso é um fenômeno normal ter novas variantes e novas linhagens e mutações ocorrendo o tempo inteiro. Isso é esperado. O que é importante é não culpar o vírus. O importante somos nós, o vírus não voa sozinho de uma pessoa para a outra. Se está aumentando a transmissão é porque as pessoas estão próximas", aponta. (Sputnik).