Num universo no qual grandes viradas costumam ser produzidas a partir de tecnicalidades que o cidadão comum tem dificuldade para compreender, a vitória de Lula por 3 votos a 2 na 2ª turma do STF é um marco na história da Justiça de nosso país -- pela relevância do personagem, pelo impacto sobre outras decisões judiciais, pelo significado político.
Ao reconhecer que Sérgio Moro não teve um comportamento imparcial no julgamento de Lula, os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e por fim Cármen Lúcia tomaram uma decisão incomum na Justiça do país e de qualquer parte do mundo.
Ao rever o voto de 2018, em função de uma compreensão mais clara de práticas condenáveis que acompanharam a condenação de Lula em função de um imóvel que nunca foi sua propriedade -- o tristemente célebre tríplex do balneário paulista do Guarujá -- acima de tudo Carmen Lúcia deu prova de respeito pelo princípio de imparcialidade do judiciário -- simbolizada pelo negro de suas togas.
Instituição conhecida pela presença de um lendário espírito corporativo, seja para proteger privilégios que deixam a população indignada, seja para conservar erros e desvios sob uma impenetrável camada de segredo, a decisão representa um passo luminoso em direção à uma transparência saudável e ao necessário auto aperfeiçoamento.
No Brasil atual, ataques ao princípio universal da presunção da inocência tornaram-se o caminho favorito para a afirmação de um sistema autoritário e excludente, baseado no lamentável costume de prender primeiro e perguntar depois -- em geral, muito depois.
Este é o sistema em vigor desde sempre nas masmorras dos confins de um sistema judiciário onde brasileiros e brasileiras sem dinheiro e sem direitos são mantidos em condições animalescas. Também funciona nas perseguições políticas que atingem as camadas superiores, que marcam períodos de avanço autoritário, como o Brasil nos dias de Operação Lava Jato.
Do ponto de vista da recuperação do Estado de Direito, o 3 a 2 da Segunda Turma tem a vantagem de questionar o mérito da sentença de Sérgio Moro -- e não apenas questões de procedimento.
O despacho da semana anterior, do ministro Edson Fachin, não debatia a culpa nem a inocência de Lula. Reconhecia um grave comportamento de Sérgio Moro, que importou para Curitiba o julgamento de um hipotético crime cometido a 441 quilômetros de distância, contrariando o direito ao "juiz natural", previsto na Constituição e no Código Penal, onde se prevê que o magistrado deve ser escolhido a partir do "lugar da infração".
De acordo com a visão de Fachin, o problema da sentença é que Lula fora julgado por um juiz sem competência para tanto. Uma falha gravíssima, mas de consequências limitadas. Lula deixava de ser condenado, mas continuaria a ser investigado, como réu nos mesmos processos, com base nas mesmas denúncias -- agora nas mãos de um tribunal de Brasília. Com um pouco de sorte, até poderia disputar a presidência em 2022. Ou, quem sabe, poderia receber uma nova sentença e retornar a existência de cidadão condenado -- com direitos políticos suspensos.
Na decisão de ontem, condenou-se a sentença de Moro, considerada parcial -- razão mais do que suficiente para ser anulada, pois fere a essência do ato de julgar, condenar ou absolver.
Lembrando que se trata de um direito reconhecido pela humanidade desde a Revolução Francesa, Carmen Lúcia afirmou claramente que "a imparcialidade não presidiu" o julgamento.
Pelo resultado, abre-se uma larga avenida para Lula participar da eleição presidencial de 2022 mas sua passagem não está assegurada por antecipação. Resta a condenação sobre o sítio de Atibaia, tão absurda quanto o triplex, mas há um detalhe.
A sentença possui estilo apontado como copia-e-cola de Moro mas foi assinada pela juíza Gabriela Hardt, que o substituiu na 13a Vara de Curitiba, fato que pode ser útil ao esforço do bolsonarismo para impedir a presença de Lula na campanha de 2022.
A solução natural seria a decisão de Fachin, aplicando o critério de "competência", que retira casos da 13ª Vara, para anular a sentença sobre sítio de Atibaia, que tampouco foi assinado por um "juiz natural". Neste caso, a distância entre o "lugar da infração" de que fala o código e a capital do Paraná onde a juíza despacha é ainda maior, 488 quilômetros.
Sabemos que, do ponto de vista jurídico, a inocência ou culpa de Lula sempre teve uma importância secundária na tomada de decisões.
Em 2018, ele foi afastado da campanha pelo tuíte de um general, que pressionou o STF a dar um voto que contrariava a Constituição.
Em 2022, a questão é saber se, apesar do reconhecimento da parcialidade de Sérgio Moro, os inimigos de Lula terão força para impedir que se apresente na campanha presidencial.
O ponto é saber se Lula tem o direito de disputar a presidência da República, num momento tão grave de nossa história. Este será o debate nos próximos meses. (Por Paulo Moreira Leite, do Jornalistas pela Democracia).
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