Ao anunciar a decisão de modificar a legislação atual do salário mínimo, para impedir reajustes acima da inflação que se tornaram direito legal desde 2008, o governo Bolsonaro-Paulo Guedes definiu uma opção política ousada do ponto de vista da paz social.
Num país onde se estima que 48 milhões de pessoas sobrevivem com um salário mínimo, a decisão envolve uma certeza e uma pergunta.
A certeza diz respeito às famílias que serão prejudicadas, no bolso ou no orçamento familiar, que constituem uma massa superior a metade da população, que já ganha pouco e sofre muito para atravessar o mês.
A lei atual do salário mínimo não nasceu de um decreto de cima para baixo e pode ser considerada uma das principais conquistas obtidas pelos trabalhadores em anos recentes. Foi assinada no governo Lula após cinco Marchas para Brasília, promovidas pelas centrais sindicais entre 2004 e 2009.
Num país onde, tradicionalmente, a luta pelos salários sempre se resumiu a um esforço para repor as perdas do passado, os reajustes permanentes somaram um ganho inédito de 74,4% num período de 15 anos, informa o DIEESE. Antecipando perdas, o cálculo criado permitiu uma evolução positiva da partilha renda, através de um sistema sofisticado, como explica uma nota técnica do mesmo DIEESE, de janeiro de 2019:
''O mecanismo de valorização adotado foi: primeiro, reposição das perdas inflacionárias desde o último reajuste, pelo INPC, do IBGE; segundo, aumento real de acordo com o crescimento do PIB referente ao ano anterior ao último (por ser um dado já conhecido no momento do aumento); e, terceiro, antecipação gradativa, a cada ano, da data de reajuste, até fixá-la em 1º de janeiro. Além disso, estabeleceu-se um longo processo de valorização, que deveria perdurar até 2023.''
Ao desmontar, de modo unilateral, um esquema que permitia prevenir perdas futuras, o Planalto abriu caminho para o retorno das perdas inflacionarias, que constituem o método histórico de reconcentração de renda no país. No final da década de 1940, as perdas salariais jamais compensadas do governo Dutra atingiram 100%. Acabaram sendo pagas pelo sucessor Getúlio Vargas, processo que custou a cabeça do jovem ministro do Trabalho João Goulart, cujo empenho a favor dos assalariados era alvo de ataque permanente dos comandantes militares do período. Três décadas depois, as perdas sob o "milagre econômico" da ditadura deram na origem às grandes mobilizações de trabalhadores da década de 1970.
Num percurso iniciado em 1930, quando a chamada "Questão Social" deixou de ser tratada como um caso de polícia, o Estado brasileiro construiu um conjunto de mecanismos institucionais destinados a resolver conflitos pela partilha da renda, mantidos inclusive durante a ditadura de 1964-1985.
Não só criou a CLT, que já estipulava um conjunto de direitos cravados em lei, mas ajudou a erguer um conjunto respeitável de instrumentos para evitar confrontos abertos e conciliar interesses. Os sindicatos de patrões e empregados foram construídos com recursos recolhidos compulsoriamente, que permitiam a oferta de serviços assistenciais necessários, que o próprio Estado não oferecia, e ajudaram a formar quadros profissionalizados. (Também estimularam lideranças acomodadas e oportunistas).
No topo da estrutura, nasceu o Ministério do Trabalho, com acento assegurado em todos os governos que o Brasil conheceu nos últimos 80 anos. Para agilizar decisões que antes ficavam travadas na Justiça Comum, criou-se a Justiça do Trabalho.
Empossado há 100 dias, desde então Bolsonaro tem trabalhado sem descanso para derrubar o edifício inteiro que protege da proteção quem sobrevive do próprio trabalho. Herdou a reforma trabalhista deixada por Michel Temer e tomou várias providências para que seja aprofundada. Os sindicatos se encontram no chão. O Ministério foi desativado e, com isso, as lideranças de trabalhadores perderam um campo permanente de negociação política. Sem a autoridade de cima, a burocracia das delegacias do trabalho, que fazia o serviço de fiscalização no chão das empresas, agora não tem a quem responder. Isso quer dizer que a informalização irá aumentar e, para quem ainda tiver carteira assinada, os abusos irão elevar-se.
No capítulo salarial, o projeto do governo não prevê aumentos reais para trabalhadores do setor privado nem para servidores públicos civis.
Mas há uma exceção -- os militares. "O projeto prevê que serão a única categoria do serviço público autorizada a ter reajuste de salários e benefícios em 2020", revela a Folha de S. Paulo. "A liberação será feita antes mesmo da aprovação da reestruturação da carreira proposta pelo governo e em tramitação no Congresso".
Ao optar por um caminho que sacrifica a maioria da sociedade em troca de ganhos econômicos maiores e imediatos a empregadores, os livros de História ensinam que cedo ou tarde a política econômica de Bolsonaro-Guedes poderá estimular choques e conflitos que podem ser agravados pela ausência de anteparos institucionais. O ponto a registrar é que nem o patronato nem o governo estarão sós, já que o mesmo projeto de Lei Orçamentária garante um tratamento diferenciado às Forças que podem ser chamada a defender a ordem. (Por Paulo Moreira Leite, do Jornalistas pela Democracia)
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