Medida pegou servidores da Saúde de surpresa, já que a proposta já havia passado por consulta pública e tramitado na comissão, com parecer final para aprovação
Por Julia Chaib e Natália Cancian/Folhapress
Hidroxicloroquina - Foto: Divulgação/MS
Após a Conitec, comissão que avalia medicamentos no SUS, aprovar um parecer que contraindica o uso de hidroxicloroquina em pacientes internados com Covid, o Ministério da Saúde decidiu convocar audiência pública para levantar novos "subsídios" para a decisão.
O encontro, que não é comum em decisões sobre temas que já passaram pelo órgão técnico, está marcado para esta quinta-feira (8).
A medida pegou servidores da Saúde de surpresa, já que a proposta, que compõe diretrizes para tratamento hospitalar da Covid, já havia passado por consulta pública e tramitado na comissão, com parecer final para aprovação.
Em geral, após esse processo, cabe à Secretaria de Ciência e Tecnologia chancelar ou reprovar as decisões e enviá-las para publicação no Diário Oficial da União.
Agora, a audiência pode abrir nova análise do tema, diferentemente do que ocorreu com outras propostas recentes de diretrizes e protocolos sobre a Covid que foram aprovadas pela Saúde após análise do órgão.
A decisão de convocar audiência foi do secretário de Ciência e Tecnologia, Helio Angotti, conhecido por ser alinhado ao presidente Jair Bolsonaro.
O secretário é também seguidor do escritor Olavo de Carvalho, conhecido como guru ideológico do governo Bolsonaro.
No último ano, Angotti ficou conhecido por adotar uma postura entusiasta do chamado "tratamento precoce". Em coletivas à época, ele também já fez críticas a estudos que apontavam ineficácia da cloroquina e costumava dar números sobre a distribuição do remédio pela pasta para uso na Covid.
Internamente, segundo o jornal Folha de S.Paulo apurou, o secretário disse que o parecer da Conitec seria baseado em evidências antigas e muito parecido com protocolos internacionais.
Angotti teria justificado a necessidade de promover audiência para atualizar o documento à luz de novas informações.
Essa será a segunda audiência pública já feita na Conitec. A primeira ocorreu neste ano, sobre um medicamento para atrofia medular espinhal alvo de ações judiciais. Orientações divulgadas pela Saúde dizem que a audiência será aberta a todos os interessados, desde que inscritos previamente.
A pedido do ministro Marcelo Queiroga, um grupo técnico e coordenado pelo professor Carlos Carvalho, da USP, com apoio de sociedades de especialistas, elabora o que será chamado "Diretrizes Brasileiras para Tratamento Hospitalar do Paciente com Covid-19".
O texto passou por consulta pública e foi chancelado pela Conitec.
Na prática, o documento não recomenda o uso de medicamentos como a hidroxicloroquina, cloroquina, azitromicina, ivermectina e outros, como o remdesivir, para tratamento de pacientes hospitalizados com Covid-19. A posição ocorre após revisão de estudos e diretrizes de diferentes países.
Por outro lado, o parecer abre espaço para uso de um grupo restrito de medicamentos, como corticoesteroides (caso da dexametasona) e anticoagulantes, mas em casos específicos e conforme orientações.
Em nota, o ministério diz que a decisão por chamar a audiência pública pode ocorrer sempre que a pasta decidir que é preciso "levantar mais subsídios".
Questionado pela reportagem, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, nega que tenha havido pressão para postergar a decisão e realizar a audiência.
Segundo ele, a ideia da pasta é aumentar a frequência das audiências públicas na comissão.
"A Conitec tem dez anos, e nunca fez uma audiência pública. Vai ter para todos os assuntos que tiveram relevância", diz ele, segundo quem a comissão pode ser consultada novamente após a audiência. "Encontramos o caminho certo para discutir essas questões técnicas".
Apesar da declaração do ministro, diferentemente do que houve com o caso dos medicamentos, Angotti assinou o primeiro capítulo das diretrizes que trata do "uso de oxigênio, intubação orotraqueal e ventilação mecânica", sem convocar audiência. A proposta que aborda os medicamentos, cuja oitiva foi chamada, será o segundo capítulo.
Outros documentos ligados à Covid, como a incorporação de vacinas no SUS e o uso do tecnologias, também tiveram decisões finais publicadas.
Nos últimos meses, o uso de medicamentos sem eficácia comprovada, como a cloroquina, tem sido defendido publicamente por Bolsonaro, na contramão de estudos que apontam ineficácia do medicamento.
Em 2020, em meio a pressão do presidente, o Ministério da Saúde elaborou um documento com "orientações" sobre uso desse e outro remédio. O texto, porém, não passou pela análise da Conitec.
Essa foi a primeira vez que a comissão deu parecer sobre a cloroquina no âmbito da Covid.
O documento, focado apenas na análise de tratamentos a pacientes internados, diz que "não há evidência de benefício" da cloroquina para pacientes com Covid "seja no seu uso de forma isolada ou em associação com outros medicamentos." A recomendação vale independentemente da via de administração (oral, inalatória ou outras).
A previsão é que diretrizes para tratamento pré-hospitalar sejam elaboradas nas próximas semanas.